domingo, 23 de outubro de 2016

Aus "Der Zuaberberg", von Thomas Mann

"Becken und Teller gehörten ursprünglich nicht zueinander, wie man wohl sah, und wie sich der Kleine aufs neue belehren ließ; doch seien sie, sagte der Großvater, seit rund hundert Jah-ren, nämlich seit Anschaffung des Beckens, im Gebrauche verei-nigt. Die Schale war schön, von einfacher, edler Gestalt, ge-formt von dem strengen Geschmack der Frühzeit des letzten Jahrhunderts. Glatt und gediegen, ruhte sie auf rundem Fuße und war innen vergoldet; doch war das Gold von der Zeit schon zum gelblichen Schimmer verblichen. Als einziger Zierat lief ein erhabener Kranz von Rosen und zackigen Blättern um ihren oberen Rand. Den Teller angehend, so war sein weit hö-heres Alter ihm von der Innenseite abzulesen. »Sechzehnhun-dertundfünfzig« stand dort in verschnörkelten Ziffern, und allerlei krause Gravierungen umrahmten die Zahl, ausgeführt in der »modernen Manier« von damals, schwülstig-willkürlich, Wappen und Arabesken, die halb Stern und halb Blume waren. Auf der Rückseite aber fanden sich in wechselnder Schriftart die Namen der Häupter einpunktiert, die im Gange der Zeit des Stückes Inhaber gewesen: Es waren ihrer schon sieben, versehen mit der Jahreszahl der Erb-Übernahme, und der Alte in der Binde wies mit dem beringten Zeigefinger den Enkel auf jeden einzelnen hin. Der Name des Vaters war da, der des Großvaters selbst und der des Urgroßvaters, und dann verdoppelte, verdrei-fachte und vervierfachte sich die Vorsilbe »Ur« im Munde des Erklärers, und der Junge lauschte seitwärts geneigten Kopfes, mit nachdenklich oder auch gedankenlos-träumerisch sich fest-sehenden Augen und andächtig-schläfrigem Munde auf das Ur-Ur-Ur-Ur, - diesen dunklen Laut der Gruft und der Zeitver-schüttung, welche dennoch zugleich einen fromm gewahrten Zusammenhang zwischen der Gegenwart, seinem eigenen Le-ben und dem tief Versunkenen ausdrückte und ganz eigentüm-lich auf ihn einwirkte: nämlich so, wie es auf seinem Gesichte sich ausdrückte. Er meinte modrig-kühle Luft, die Luft der Ka-tharinenkirche oder der Michaeliskrypte zu atmen bei diesem Laut, den Anhauch von Orten zu spüren, an denen man, den Hut in der Hand, in eine gewisse, ehrerbietig vorwärts wiegen-de Gangart ohne Benutzung der Stiefelabsätze verfällt; auch die abgeschiedene, gefriedete Stille solcher hallender Orte glaubte er zu hören; geistliche Empfindungen mischten sich mit denen des Todes und der Geschichte beim Klang der dumpfen Silbe, und dies alles mutete den Knaben irgendwie wohltuend an, ja, es mochte wohl sein, daß er um des Lautes willen, um ihn zu hören und nachzusprechen, gebeten hatte, die Taufschale wieder einmal betrachten zu dürfen".

domingo, 6 de dezembro de 2015

On Dolphin's social cognition

"Intercepted echolocation data could generate objects that are experienced in more nearly the same way by different individuals than ever occurs in communal human experiences when we are passive observers of the same external environment. Since the data are in the auditory domain the 'objects' that they generate would be as real as human seen-objects rather than heard-'objects', that are so difficult for us to imagine. They could be vivid natural objects in a dolphin's world" (Jerison).


"The traditional scientific assumption that animals are automata devoid of consciousness is now outdated and the "precautionary principle" borrowed from environmental law should be adopted. As interpreted to apply to animals, we should assume animals do have consciousness in case they do; if they do not it does not matter" (Bradshaw).

Minding animals

Hoje deparei-me com essa linda expressão num texto do Bekoff:

"When I study animals I try to "mind" them. Basically, the phrase "minding animals" means two things. First, it refers to caring for other animals beings, respecting them for who they are, appreciating their own world views, and wondering what and how they feel and why. Second, it refers to the fact that many animals have very active and thoughtful minds" (p. 462, A communion of Subjects: Animals in Religion Science and Ethics).

Traduzir “minding animals” não é uma tarefa simples. É mesmo uma daquelas expressões de fronteira, nas quais você encontra tudo o que está em jogo num problema. No sentido mais trivial, ele parece apenas dizer: “Para investigar a mente dos animais é preciso se importar com eles”. Mas “importar-se” é uma noção tão vaga, tão gasta! Importamo-nos com tanta coisa com as quais na verdade não nos importamos!

Sendo um deep-ecologist, é provável que Bekoff coloque um maior peso na noção de “cuidar pelo ser dos outros animais”. Só posso compreender a mente dos animais se consigo me engajar em uma atitude que conjugue um desejar saber (to wonder) ao cuidar pelo ser do animal; um atitude que se permita cativar, que se permita maravilhar (to be amazed). Como se compreender o animal demandasse uma conversão do sujeito de todo distinta da atitude científica tradicional, desinteressada e distante.

Não basta colecionar dados a partir de experimentos controlados – o que Bekoff não apenas faz ele mesmo (ele é também um cientista “tradicional” neste sentido”) como nos apresenta uma série de outros experimentos. É preciso mais. É preciso ser capaz de ver estes dados como um meio, uma “porta de acesso”, para a experiência animal. Um acesso direto à experiência, mediado por esta conversão subjetiva à atitude de minding animals, que emerge dos dados experimentais, mas vai além deles.

Minding animals é um exercício de devir-outro: “Quando eu observo animais eu devenho coiote, devenho pinguim (também devenho árvore, e frequentemente devenho uma pedra). Eu nomeio meus amigos animais e tento adentrar em seus mundos sensorial e motor para sentir como eles poderiam ser, como eles sentem seu entorno, e como eles se movimentam e se comportam em certas situações. Os mundos dos outros animais estão carregados de mágica e surpresa”.

Exercício imaginativo, que algum cientista se apressaria por denunciar como deslocado, inapropriado, injustificado: "subjetivo"; que algum filósofo talvez chame pré-crítico, "ingênuo": “é óbvio”, ele diria, “que o mundo do animal é inacessível, que aqui não se faz mais que projetar as categorias humanas por sobre os animais, não passando, portanto, de antropomorfismo”. Ao que Bekoff responderia, resolutamente, que sim, é exatamente disto que se trata. Um antropomorfismo como recurso metodológico, que faz andar uma aproximação, uma espécie de afinação do equipamento experiencial do sujeito (observador) ao de outro sujeito (observado), que faz convergir o papel de “vedor” (aquele que vê, see-er) e o “visto” (seen).

Convergir, não coincidir, dado que se trata de um devir-outro que não apaga o hiato, a diferença intersubjetiva. Como se animais humanos e não-humanos fossem instrumentos musicais distintos que se tratasse de afinar. Eventualmente eles podem executar notas idênticas, eles vibram juntos, mas por percursos vibratórios totalmente distintos. O exercício imaginativo próprio à compreensão dos animais demanda um conhecimento objetivo (dados científicos) sobre o que conta como relevante na experiência deste ou daquele animal. Os dados, entretanto, são fragmentários. Eles informam sobre como determinada espécie ou população reage a determinadas alterações no ambiente, sua capacidade de aprendizagem, suas práticas reprodutivas, sua fisiologia nervosa, sua bioquímica, etc. O dado científico é objetivo, ou seja, ele toma como objeto algo num sujeito. Mas isto ainda não é compreensão. Apenas quando se for capaz de integrar estes fragmentos num todo com experiência própria, um sujeito, é que se poderá falar de minding.

Em certo sentido, minding animals é um esforço de expansão da hermenêutica, que recusa o abismo ontológico humanos/não-humanos em que ela foi tradicionalmente confinada. Mas não me agrada esta forma de colocar a questão. Parece-me que o problema não meramente expande um dado esquema de pensamento de que já dispomos. Ele, muito mais, o extrapola. A questão não é tanto de sentido, quanto de experiência. Como a experiência intersubjetiva do outro, com quem não disponho de uma comunidade ontológica já constituída, interpela-me e me propõe uma nova constituição de mim mesmo como sujeito? Como eu devenho outro sujeito do que eu era por meio de uma experiência intersubjetiva? O animal coloca em questão não apenas meu esquema categorial, mas meu próprio arranjo subjetivo. Desde sua inacessibilidade, ele não fala a meu esquema e ainda assim me interpela.

sábado, 28 de novembro de 2015

Ian Hodder e o emaranhado de humanos e coisas


Creio que o maior desafio com o qual topamos ao renunciar à noção de substância é conceber uma noção relacional de realidade que a substitua. Enquanto substância seria aquilo que não depende de mais nada para ser, que dispõe, assim, de alguma subsistência e consistência próprias, a relação supostamente é aquilo que não poderia ser sem no mínimo dois "algo" que se relacionam. A dependência da relação conduz inevitavelmente à pergunta pelo que independe.

Haveriam duas possibilidades, pelo menos, de aceitar o desafio. A primeira seria conceber o "algo" que se relaciona de tal modo que seja ele mesmo um resultado relacional de outros "algos". É o que Whitehead faz com suas entidades atuais, por exemplo. O mundo de Process and Reality continua desenhado como um composto de "blocos construtores", ele possui unidades atômicas. Entretanto, o menor bloco não surge como aquilo que explica o real, pelo contrário, ele próprio é explicado pela tessitura processual do real. As entidades atuais, pensadas como substâncias, são o ponto de chegada, o efeito processual do avanço criativo do universo: são o um precedido pelo muitos - e imediatamente convertido em muitos novamente.

Outra possibilidade seria esta que Ian Hodder desenvolve no seu artigo "The Entanglements of Humans and Things: A Long-Term View". Não há qualquer necessidade física de que o efeito seja plenamente explicado por sua causa. Boa parte das explicações científicas se valem de causas contributivas, que produzem um efeito determinado apenas se dadas circunstâncias também se derem. Como aproveitar isto metafisicamente? Talvez através de uma metafísica de "meios", não de "origens". Humanos e coisas sempre já se produziram, uns aos outros, relacionalmente. Se, no lugar de perguntar pelo começo de tudo, perguntarmos como nos encontramos (o que há, "agora", na duração de humanos e coisas?), o que se nos salta aos olhos é um "emaranhado" (entanglement), em que humanos e coisas dependem uns dos outros reciprocamente: tanto no sentido privativo, enquanto apanhados e aprisionados, quanto no sentido produtivo, de que a dependência provê novas possibilidades.

O esquema que Hodder traça propõe quatro combinações - com humanos dependendo de outros humanos e de coisas, e coisas dependendo de outras coisas e de humanos - e consegue problematizar uma característica que constantemente ameaça as abordagens relacionais. Qual seja, a de não abrir espaço para as coisas fora dos tipos de sociabilidade marcadamente humanos. Ainda que Latour inicialmente pretenda romper com os dualismos (mostrando-os como efeitos e não como causas), ele ainda corre o risco de inviabilizar que as coisas sejam outras que aquilo em que as relações sociais as integrarem. Problema metafísico da noção de significado? Pense-se na crítica de Harman que, no mesmo sentido, descobre muito pouco espaço para aquilo que das coisas é indisponível para as relações. Se toda relação é interna, então toda relação é externa, do mesmo modo, e no lugar de uma substância autossuficiente deparamo-nos com uma conjunção passiva de relações.

Hodder lida com esta questão como arqueólogo. Tanto ao colocar o emaranhado a partir de uma intuição de que há uma vida própria das coisas que nos arrasta e nos envolve em seu interior, quanto ao perceber a "matéria bruta das coisas", que se recusa a ser reduzida ao "significado". Há algo das coisas que subjaz às relações, há algo interno que nada atinge, mas que constantemente avança em direção ao mundo público. As coisas possuem uma vida privada que resiste à colonização. Por esta razão, o emaranhado pode aparecer como um tendência concreta da história humana, porque há nele sempre uma novidade possível. Há um inefável, impremeditável, incalculável, que cresce à medida em que cresce nosso envolvimento com as coisas. Quanto mais dependentes e mais ocupados na manutenção de um mundo, ele mesmo, também, progressivamente mais dependente ("The whole environment in the Anthropocene is itself an artifact needing care, fixing, and manipulation"), quanto mais engajados em consertar, remendar, "dar um jeito", quanto mais gambiarras precisamos projetar, mais e mais envolvidos estamos.

"The more material people accumulated, the more they had to look after it and manage it. People were becoming increasingly entangled in things. Especially problematic were the walls of houses. The sun-dried mudbrick absorbed rainwater very easily, swelled, and then contracted. The walls had a tendency to crack, buckle, bend, and collapse. People had to find solutions to keep them up and stable; for example, they constructed wooden frames within houses or built buttresses against walls or used sandier bricks. So people got increasingly caught up in things and in the care and management of things. One thing just seemed to lead to another, as new solutions were found which themselves depended on getting more things" (p. 29).

E ainda:

"If humans are to depend on things, they have to get involved in the lives of things, to look after them, repair them, replace them, manage them. But in order to do this, humans need yet more things".

Desde a sua insondável interioridade as coisas não cessam de produzir novas demandas de arranjos materiais. Quanto mais remendemos o mundo, mais ele precisa de remendos. Não apenas porque antes "não sabíamos" as consequências, mas porque o mundo se torna outro a cada remendo; não se pode saber previamente o que conta como relevante (quais as variáveis da equação) em um problema ainda não dado. Provocativamente, então, poderíamos concluir que a ciência contemporânea, pelo mesmo motivo que possui um conhecimento de precisão sem igual, também possui uma "ignorância" sem igual, não quanto ao que ela stricto sensu não sabe, mas ao que ela não pode saber, porque simplesmente ainda não é. Quanto mais intervimos, mais emaranhados estamos e menos podemos prever as consequências da próxima intervenção.

O que Hodder traça é uma tendência de longo prazo, em que nosso envolvimento com coisas lida com suas deficiências através de ainda mais coisas, como se o "conserto" valesse não apenas como uma restituição a um estado funcional original, mas, muito mais, como um novo arranjo, com outras deficiências e outras armadilhas, demandando ainda mais trabalho para ser mantido. Quando se reflete de forma holística sobre a rede de relações humano-coisas, na qual se desdobra nosso engajamento no mundo, constata-se que os custos de manutenção são sempre materialmente crescentes; as soluções contábeis são sempre locais. Em alguma medida, Hodder vê como "natural" o raciocínio pragmático, pelo menos uma vez que esta tem sido a forma dominante como temos lidado com nossos problemas: um problema com coisas demanda outras coisas para resolvê-lo. Talvez se possa adicionar, que se trata de um raciocínio teimosamente local para questões resolutamente gerais; e nisto já estão como que pre-figuradas todas as armadilhas do aquecimento global.

A força do argumento relacional está em seu realismo. Não é que humanos precisem recuperar sua "essência interior", "re-descobrir" que podem ser "mais que" coisas, ou qualquer outra ideia de humano que se entenda "estar em falta". Somos o que somos e o que temos sido, nada mais que isto. Ou seja, somos aquilo que negociamos com o que não somos; negociamos e somos negociados, simultaneamente. O que Whitehead chamou de "sujeito-superjeito": não o que subjaz às relações, mas o que resulta nelas. Se estamos, portanto, aprisionados em um modo de raciocínio tão generalizado e de tão longa duração a ponto de poder ser chamado "natural", é porque ser "humano" tem sido ser "pragmático" desta forma, neste engajamento específico com coisas, que tanto desconsidera o que das coisas é ativo é imprevisível quanto o que dos problemas é geral e indomável. Portanto a questão não é recuperar o humano verdadeiro, por oposição ao falso e alienado, é inventar um outro do que somos. Um somos não-humano, não qualificável por este atributo essencial chamado "humano". O problema ético se funde ao político, trata-se de mudar coletivamente o que quer dizer ser humano. Trans-humanidade ou inumanidade?